I9Action

Inove nas suas escolhas!

Subscribe
Add to Technorati Favourites
Add to del.icio.us
quarta-feira, 19 de março de 2008

Leonardo de todos os instrumentos

Publicada por Unknown


Ele não falava grego nem latim. Jamais frequentou uma universidade e por isso era desprezado nas rodas intelectuais de Florença, no Renascimento. Mas as suas pinturas e projectos de engenharia tornaram-no famoso e admirado pelos poderosos da época. Muito tempo depois, o mundo viria a conhecer o lado secreto deste génio superlativo.

"De tempos em tempos, o Céu envia-nos alguém que não é apenas humano, mas também divino, de modo que, através de seu espírito e da superioridade de sua inteligência, possamos atingir o Céu." Com estas palavras, Vasari, o célebre biógrafo do século XVI, inicia o seu relato sobre a vida de Leonardo da Vinci. Apenas 30 anos após a morte deste génio superlativo, a sua figura já estava totalmente envolvida pela aura do mito.

Nascido na pequena cidade de Vinci, próxima de Florença, no dia 15 de abril de 1452, Leonardo seria considerado, em pouco tempo, o maior pintor da sua época, protegido e adorado em algumas das principais cortes europeias. Mas o seu enorme prestigio não se restringiu à pintura. Escultor, músico, arquitecto, engenheiro civil e militar e extraordinário inventor, ele foi a versão suprema do homem dos sete instrumentos.

O seu talento versátil expressou-se mesmo em actividades mundanas e tipicamente cortesãs, como a organização de festas e diversões para a nobreza: desde a invenção de um palco giratório para apresentações teatrais até ao desenho de trajes de luxo; de entretenimentos musicais à arte da conversação e aos jogos de palavras. Vasari diz que ele "foi o melhor improvisador de rimas do seu tempo".

Mas, coexistindo com este Leonardo público, célebre e celebrado, houve outro, talvez ainda mais assombroso: um Leonardo solitário e secreto, que permaneceria desconhecido durante muito tempo. Numa actividade recolhida, sigilosa, escrevendo da direita para a esquerda para que o seu texto não pudesse ser lido, o que lhe era facilitado pelo facto de ser ambidestro, encheu páginas e páginas com a mais eclética massa de conhecimentos, produzindo, com anotações e desenhos, uma gigantesca colcha de retalhos do saber universal. Os primeiros manuscritos de que temos noticias datam de 1478, quando Leonardo, então em Florença, contava ainda 26 anos. Os últimos são de 1518, de poucos meses antes da sua morte, ocorrida na França, em 2 de maio de 1519.

Em cerca de seis mil páginas que nos restam dessa prodigiosa obsessão há praticamente de tudo: Geometria e Anatomia; Geologia e Botânica Astronomia e Óptica; Mecânica dos Sólidos. Mecânica dos Fluidos; Balística e Hidráulica; magníficos desenhos preparatórios e exaustivos estudos de perspectivas; considerações teóricas sobre a arte e anotações técnicas muito precisas sobre como fundir uma estátua equestre em bronze; o plano arquitectónico para a construção da catedral de Milão e um projecto de desvio do curso do rio Arno para ligar Florença ao mar; mapas e planos urbanísticos; projectos de pontes e fortificações.

Há, principalmente, a mais fantástica colecção de invenções e soluções de engenharia já imaginadas por um único homem: esboços de helicópteros, submarinos, pára-quedas, veículos e embarcações automotores, máquinas voadoras; projectos minuciosos de tornos, máquinas perfuradoras, turbinas, teares, máquinas hidráulicas para limpeza e dragagem de canais, canhões, metralhadoras, espingardas, bombas, carros de combate, pontes móveis etc.

Mas esse Leonardo, que escreveu praticamente sobre tudo, escreveu muito pouco sobre si mesmo. Sabemos que no seu comportamento quotidiano reflectia-se a mesma ambiguidade presente na sua produção intelectual. Gostava de se cercar de luxo, tratava amigos e criados com opulência e generosidade, mas tinha hábitos frugais: era vegetariano e preferia a água ao vinho. Muitas das suas noites foram consumidas na dissecação de cadáveres, no meio dos odores da morte e da decomposição. O quanto ele era habilidoso nessas técnicas mostram-no os seus desenhos anatómicos, considerados superiores aos do célebre Andreas Vesalius, o grande anatomista do Renascimento.

A sua infância não foi fácil, o que talvez explique o gosto pelo luxo na idade adulta. Filho ilegítimo de um tabelião florentino e uma camponesa, foi criado longe da mãe, na casa do avô paterno, junto do pai e de uma madrasta. Pelo menos até a idade de 20 anos, foi filho único e só teria irmãos no terceiro ou quarto casamento do pai. Depois de afastado do convívio com a mãe, a morte da primeira madrasta, quando Leonardo tinha cerca de 13 anos, parece ter representado para ele uma segunda grande perda afectiva. Logo haveria uma terceira, aos 16 anos, com a morte do avô, a quem era muito ligado.

Desse complexo quadro de vida, Freud, o fundador da psicanálise, derivou a sua interpretação da trajectória de Leonardo. Ela seria movida por uma repressão da pulsco sexual e por uma inibição afectiva, em que a pulsão do conhecimento acabaria por submergir, pouco a pouco, qualquer outro factor emocional. Peça chave da explicação freudiana é a hipótese, que hoje parece indiscutível, da homossexualidade de Leonardo.Seja como for, aos 17 anos ele já havia dado provas de seu talento excepcional. O pai inscreveu-o, então, como aprendiz no grande atelier de Andrea Verrochio, em Florença. Não se tinha lá uma formação erudita; o ensino era todo voltado para a prática; mas era incrível a massa de conhecimentos que se podia adquirir: cálculo, perspectiva, desenho, pintura, escultura em pedra e metal, arquitectura, construção civil e militar etc. É ao atelier de Verrochio que Leonardo deve toda a sua formação básica. A partir daí ele será um autodidata. Muitas coisas aprenderá por ouvir dizer, numa época em que grande parte do conhecimento ainda era adquirida de ouvido. Outras, porém, custam-lhe um enorme esforço de leitura e sistematização de que os manuscritos por ele deixados são testemunhos.


Aos 40 anos, copia nos cadernos palavras eruditas, retiradas dos livros, que possam enriquecer o seu vocabulário rústico. Aos 50, está envolvido ainda com um estudo por conta própria, não só do latim, mas também da geometria de Euclides, que será uma paixão e um modelo até o fim da vida.

Ele era, então, o que alguns dos seus pedantes contemporâneos classificaram como um uomo senza lettere (homem sem letras), isto é, alguém que não possuía uma formação humanística: de facto jamais frequentara a universidade e, durante muito tempo, esteve impedido de ter acesso directo à grande cultura pela barreira do idioma, já que não dominava o latim e muito menos o grego. Esse menosprezo dos meios sofisticados, a que Leonardo respondia com afectado desdém, não deixou de magoá-lo, reabrindo feridas mal curadas da sua infância traumática. Os biógrafos são unânimes em apontar como uma das principais causas da sua primeira saída de Florença, por volta dos 30 anos, uma dificuldade de adaptação ao culto e refinado ambiente florentino.

A mudança para Milão, em 1482, representou uma mudança decisiva na sua trajectória intelectual. Nos dezessete anos que passou a serviço do duque Ludovico Sforza, o seu génio floresceu plenamente. Não só em pinturas soberbas, como “A última Ceia” e a primeira versão de “A virgem dos Rochedos”, mas também na afirmação definitiva da sua vocação para a ciência e a tecnologia. A queda de Ludovico com a ocupação de Milão pelos franceses, em 1499, pôs fim a esse período brilhante e relativamente tranquilo. A partir daí, Leonardo, já uma celebridade, iria trocar de domicilio e patrão ao sabor da instável conjuntura política italiana: novamente Florença, com rápidas passagens por Mântua e Veneza; Urbino, como arquitecto militar e engenheiro chefe de Cesare Borgia, em cuja corte se encontrou com Maquiavel, fundador da ciência política moderna; outra vez Milão, a convite do governador francês Charles d'Amboise; Roma, na corte papal.

Essas mudanças constantes não lhe bloquearam porém a criatividade. É do segundo período florentino, por exemplo, o seu quadro mais famoso, na verdade, o mais famoso de toda a história da pintura, a “Mona Lisa”, enigmático retrato da esposa do rico comerciante Francesco del Giocondo. Já a estadia em Roma, novamente a serviço dos Medici, seria certamente a fase mais desgostosa da sua vida.

Giovanni de Medici, filho de Lourenço, o Magnífico, havia sido eleito papa, com o nome de Leão X, e saudou a sua eleição com uma frase que ficou célebre: "Já que Deus nos deu o papado, gozêmo-lo". Amante dos prazeres, da pompa e do luxo, protector das artes na medida em que satisfizessem a sua vaidade, tratou logo de atrair para a sua corte os artistas mais brilhantes. Lá se reuniram os três maiores nomes do renascimento italiano: Leonardo, Michelangelo e Raffaello. Deveria ser um momento privilegiado na história da arte. Mas não foi um momento feliz para Leonardo.

Contava então 60 anos - era uma geração mais velho do que Michelangelo e duas mais do que Raffaello. O seu contacto com Michelangelo foi francamente hostil. Típico produto do ambiente patrocinado pelos Medici, Michelangelo nada tinha em comum com a formação científico-experimental leonardiana. Além do mais, trabalhava rápido, num ritmo alucinante. Enquanto Leonardo, dispersivo e perfeccionista, projetando a sua transbordante genialidade em inúmeras direcções, mas sem paciência de levar nenhum projecto até o fim, trabalhava devagar e adiava sempre. À preferênciacia dos romanos por Michelangelo e Raffaello e ao ambiente hostil da corte papal, Leonardo respondeu com retraimento e um de seus desenhos mais perturbadores, O “Dilúvio”, uma visão apocalíptica de destruição e aniquilamento.

Ele escapou desse tormento graças à subida de Francisco I ao trono de França. Convidado a assumir o cargo de "primeiro pintor, engenheiro e arquitecto do rei", foi instalado no palácio de Cloux, a apenas algumas centenas de metros do palácio real de Amboise, no condado do Loire, França, recebendo tratamento principesco. Lá viveria, de 1516 até o ano de sua morte, em companhia de seus discípulos predilectos, entre eles Francesco Melzi e Salai.

Ambos haviam-se unido a Leonardo ainda no seu primeiro período milanês. Melzi herdaria praticamente todo os seus bens. Salai, um garoto de apenas 10 anos quando entrou a serviço do mestre, já no segundo dia robou-lhe algum dinheiro, o que continuaria, a fazer com certa regularidade ao longo dos anos. Leonardo anotou que ele era "ladro, bugiardo, ostinato, ghiotto" (ladrão, mentiroso, obstinado, glutão), mas nem por isso deixou de mimá-lo. Com uma ponta de malícia Vasari descreve-o como belíssimo gracioso, com vastos cabelos encaracolados, de que Leonardo "si diletò molto" (se agradou muito) referência que, evidentemente, não escapou à atenção de Freud.

A julgar pelos seus últimos auto-retratos e pelo testemunho dos visitantes, Leonardo parecia sofrer de alguma doença degenerativa, que lhe dava uma aparência envelhecida. A sua mão direita estava semiparalisada, talvez em decorrência de um derrame cerebral. Nos aposentos, guardava algumas das suas maiores preciosidades: três magníficas pinturas “Sant'Ana”, a “Virgem e o Menino”, a “Mona Lisa” e São João Batista e os manuscritos que carregara consigo nas suas muitas viagens e a vida inteira teimou em manter inéditos.

Herdados pelo discípulo Mezi, esses manuscritos acabariam por se espalhar da maneira mais tortuosa e só começaram a ser redescobertos a partir do final do século passado. A impressão inicial causada pelas seis mil páginas sobreviventes é de um caos desconcertante. Os assuntos misturam-se sem nenhuma ordem aparente: na mesma página, a anotação mais instantânea e trivial da vida quootidiana pode estar lado a lado com o enunciado de um teorema ou com a observação acurada de um fenómeno natural. O método de trabalho de Leonardo talvez explique em parte essa incrível dispersão. Sabemos hoje que ele carregava sempre consigo cadernos de notas em que podia registar uma frase ou esboçar rapidamente um desenho. Ao lado desses, havia outros cadernos, mais ordenados e homogéneos, preenchidos com calma no silêncio de seus aposentos. Neles, numa escrita elegante e em desenhos de acabamento impecável, procurava dar às suas ideias uma forma definitiva.

Mesmo nesses cadernos, porém, os assuntos muitas vezes atropelam-se: não é raro que uma demonstração, começada com preciso enunciado de premissas, acabe indo parar bem longe do ponto de partida. Mas o caos é apenas aparente. Como observa Anna Maria Brizio, uma das maiores estudiosas leonardianas da actualidade, pouco a pouco se percebe que "a múltipla disparidade de argumento emana de um único centro e contém uma formidável unidade de processo mental". Arte, ciência e tecnologia encontram-se aí de tal modo amalgamadas, que se passa de um domínio a outro praticamente sem perceber.

A ciência de Leonardo é toda baseada no primado da visão sobre os demais sentidos e da geometria sobre as demais disciplinas. Em geometria, ele realizou descobertas teóricas importantes, como a determinação dos centros de gravidade dos sólidos geométricos e a transformação de um sólido em outro, com a do volume. Em estática, foi o primeiro a compreender a possibilidade de se decompor uma força segundo duas direcções, o que lhe permitiu resolver um grande número de problemas práticos. Em cinemática, ciência que só seria precisamente formulada quase 150 anos mais tarde, com os trabalhos de Galileu, ele intuiu as leis que regem os choques entre dois sólidos iguais como duas bolas de bilhar.

A curiosidade de Leonardo empurra-o mesmo a terrenos ainda não desbravados, como a mecânica dos fluidos, disciplina praticamente ignorada pelos gregos, a grande fonte das ciências medieval e renascentista. Uma de suas investigações nessa área explicada em detalhe pelo estudioso Carlo Zammatio pode ser considerada um caso exemplar de seu procedimento científico.

Mas foi no domínio da tecnologia que se deram algumas de suas mais espantosas realizações. Uma delas só descoberta muito recentemente, a partir de um trabalho de restauração num dos cadernos leonardianos é uma bicicleta muitíssimo superior, em termos solução de engenharia, às primeiras bicicletas que seriam fabricadas por volta de 1817. Na verdade, o sistema proposto por Leonardo, com pedal ligado a uma roda dentada que transmite a força à roda traseira através de correia só adoptado no começo do século XX. A sua bicicleta nunca foi construída. O mesmo se pode dizer, quase com certeza, de todos os seus outros inventos, geralmente avançados demais para as possibilidades técnicas da época.

Além disso, a mistura contraditória de dispersão e perfeccionismo fez com que, também noutros domínios, a sua criação ficasse incompleta. Na pintura, deixou vários quadros inacabados. Na ciência, as suas geniais antevisões jamais receberiam uma sistematização final, permanecendo secretas e em nada influenciando o desenvolvimento científico da humanidade. Leonardo era extremamente susceptível ao julgamento público e essa deve ter sido uma das causas da ocultação dos manuscritos. Porque, para escrever para o mundo culto, era preciso rigor, sistematização, refinamento de expressão e, principalmente, um domínio perfeito da língua latina. Características dificilmente encontráveis num uomo senza lettere. Ironicamente, esses manuscritos fragmentários, redigidos em língua vulgar, permaneceriam como um dos mais

0 comentários: